Inevitável companheira, a derrota (textão, leia com tempo)

Compartilho uma experiência com a nossa implacável perseguidora. A relação conturbada que tive e ainda tenho com “a nossa inevitável”.

Aquela maldita, que me impedia de participar de competições, afinal se eu nunca competisse, eu nunca seria derrotado em nada. Isso também não fazia o menor sentido, afinal é o mesmo que nunca fazer exames para descobrir uma doença e acreditar que nunca terá a doença por não se deixar examinar. E nessa insensatez eu deixei de me expor ao risco e perdi a chance de aproveitar várias competições na vida.

Jogando o digital

Uma maneira segura de me arriscar a ser derrotado era jogar jogos digitais sozinho, contra a máquina, assim ninguém veria minha vergonha. Eu poderia tentar novamente sem que ninguém soubesse das burradas, e eu só contaria resultados a alguém se me fosse agradável, senão fingia que nunca joguei e minha realidade distorcida de ser um vencedor estava perfeita, apenas na minha imaginação. Era uma utopia.

Jogando online

Então comecei com um jogo online, de comunidade bem polêmica, chamado Lolzinho. Calma que essa droga faz parte importante do processo. Nele você joga em dois times de cinco pessoas cada. Tive que dar a cara a tapa para perder para outras pessoas ao invés de uma máquina sem julgamento, isso foi interessante e doloroso. Independente de opiniões sobre o jogo, foi jogando ele que me dei conta de uma coisa, em algum momento que não sei qual exatamente, algo mudou. Eu comecei a perceber que vencer ainda era bom, e claro que ser derrotado era ruim, eu não quero ser cínico nem vender uma mentira descarada. Mas independente do desfecho o que era realmente triste era que a partida chegava ao fim, mesmo comemorando eu sentia muita falta do meio da partida. O que eu gostava mesmo era da sensação de estar em partida, tentando, pensando, experimentando e testando coisas. O final, mesmo vitorioso ainda tinha a amargura de indicar que a brincadeira havia encerrado. Foi com um jogo mal-falado que eu me questionei se eu gostava mais de vencer do que de jogar, e o que eu gosto é de jogar em primeiro lugar, e obviamente, vencer logo após essa prioridade.

Calma que uma hora chego nos jogos de tabuleiro. Uma outra característica bem interessante, no assunto de derrotas, ainda no sobre o Lolzinho da vida é que ele tem um gerenciador de disputas. Você entra em uma fila, e o algoritmo seleciona os oponentes e colegas de time, que ele tenta calcular serem semelhantes a você em habilidade. Isso significa que se você começa a vencer muito, nas contas do gerenciador ele te alinha com oponentes estimados como melhores, te deixando sempre desafiado. Isso tem um efeito de, matematicamente, o gerenciador se esforçar para que você ganhe e perca com uma taxa próxima a 50%. Para alguém neurótico como eu era(falo mais disso adiante), eu fui exposto a um número bem bom de derrotas na minha cara, elas me fizeram começar a enxergar o quanto eu fazia burradas, embora fui lerdo para me tocar da quantidade.

Percebi que pedir rendição(era uma opção) antes do final da partida não fazia sentido na minha cabeça. Ao me render eu estaria abandonando o jogo e forçando o gerenciador de partidas a me alinhar com oponentes mais fracos, desperdiçando a experiência de enfrentar os jogos realmente difíceis. Sim, alguns jogos eram difíceis por trapalhadas minhas(isso eu tinha dificuldades de enxergar), outros eram difíceis por trapalhadas dos colegas aleatórios, outros por ambos. Mas independente de culpa, eram jogos difíceis, e se eu evitasse os jogar, seria como se eu trocasse os pesos da academia de musculação por pesos mais leves toda vez que desse trabalho. Não parece uma forma eficiente de maromba fugir do desafio e colocar pesos de isopor. Um outra coisa que comecei a fazer, foi encerrar logo partidas que os inimigos eram muito iniciantes, não tinha razão de ficar fazendo bullying com pessoas iniciantes, prolongando a partida, ganhava logo e ia para outra tentar apanhar um pouco. Uma coisa que veio como resultado inesperado foram as vezes que um jogo considerado perdido houve uma reviravolta e meu time conseguiu vencer, se eu tivesse simplesmente rendido cedo, nunca veria essas partidas. A rendição passou a apenas significar um ciclo de procurar jogadores mais novatos que eu para “bater”. Isso começou a não me trazer mais satisfação.

Jogando o analógico

Agora mais velho (mais ainda), os jogos de tabuleiro modernos deram uma florescida no Brasil, e isso me permitiu jogar contra pessoas conhecidas do meu círculo pessoal. Isso me trouxe novas porradas na cara. Antes com jogos online eu perdia de pessoas completamente desconhecidas, e nunca mais as via. Eu não sabia que a plataforma digital escondia minha covardia de perder para pessoas “reais”, próximas e materiais. O anonimato da Internet escondia minha fragilidade em lidar com isso. Tive um bom recuo nas neuroses ao lidar com isso. Voltei a arrumar desculpas para tudo, fugir da minha parcela de culpa nas derrotas apontando o dedo para todos outros fatores, tentando disfarçar que eu estava envolvido na derrota. Levou um tempo para eu começar a aceitar o peso da minha participação na composição de um fracasso. E nos jogos de tabuleiro a coisa é ainda pior, no Lolzinho digital havia uma tendência média a perder 50% das partidas, mas se estou jogando tabuleiro com 3 outras pessoas, e apenas uma vence, então a quantidade de vitórias continua sendo 1 mas agora são 4 jogadores para onde ela pode ir!

Creio que só consegui lidar com isso ao entender que não existe um ranking de humanos, ninguém será avaliado por resultados, e que se essa porcaria não existe entre ninguém, ainda mais entre as pessoas que convivo, que me são companheiras. Outra coisa interessante que me ajudou foi ter humildade, mas uma versão de humildade diferente que a que eu tinha quando era um jovem narcisista nojento. Quando jovem, eu acreditava que humildade era eu, um cara que pensava ser o megapower, não esnobar outras pessoas sendo o poderoso megapower(na minha visão doentia eu era). Hoje meu conceito de humildade é que ninguém é melhor do que ninguém de maneira alguma, nem o CEO de uma empresa, nem o assalariado da empresa, nem o atleta mais famoso, nem os acionistas da empresa, nem alguém que recebe mensalmente o PIB anual de um país inteiro sozinho. Todo mundo é especial, e isso é exatamente o mesmo que ninguém nesse mundo ser especial, todo mundo é igualmente diferente e irrelevante. Eu tive um peso imenso removido dos ombros com isso. Posso apenas existir do meu jeitão, e viver como eu gostar de viver. Imagine agora o quão pouco é relevante que eu perca um campeonato de alguma coisa, ou pior, uma partidinha em casa com amigos, estou pouco me lixando. Se fui eu quem defequei a partida daquele cooperativo, enterrando o jogo para todos, eu não queria, não gostaria, me esforcei e tentei não fazer besteira, mas se fui uma anta, segue a vida, vou superar e rir disso. Na próxima tento não destrambelhar tudo, e que venha essa próxima aí. Se um colega estiver aprendendo um cooperativo e estiver descobrindo o jogo, experimentando algo, fizer uma ação que nem é a mais otimizada no meu gosto, paciência, deixa ele ter a experiência, não meto o “jogador alfa”, afinal, perder junto também faz parte, posso sempre treinar minha habilidade de não “alfar”. Se o colega não pediu ajuda e está confortável experimentando, deixa ele jogar o que entendeu do jogo.

Ainda gosto de vencer, e desgosto perder, mas o momento de apreciação desses sentimentos é muito curto, uns poucos segundos imediatos ao desfecho da partida. Ao não sofrer ansiedade com o final, a apreciação do decorrer da partida é muito melhor, algumas partidas eu nem ligo e experimento algo inovador, um caminho que ninguém percorre, corro mais riscos se houver expectativa de diversão neles, posso realmente aproveitar a maior parte do jogo que é o durante. Hoje perco partidas e meus amigos ainda estão lá, ainda respeitam a mim, me recebem como igual, uma outra pessoa que também está aí vivendo sua história. Se alguém na mesa não me receber como igual após alguma baita burrice minha, a titica está é na cabeça dessa pessoa, eu sigo minha vida como vivo.

Uma maravilhosa consequência surpresa em me doer menos com os desfechos é que consegui apreciar melhor as vitórias dos outros, enxergar o brilhantismo de alguns oponentes, aprender com erros e com acertos dos outros. Me senti orgulhoso de poder elogiar jogadas e vitórias alheias, é libertador saber que posso oferecer reconhecimento aos outros ao invés de ficar apenas desejando isso para mim, que bacana poder ter uma troca, parece que sou uma pessoa que cria um ambiente mais saudável, sou uma pessoa que cria um ambiente no qual eu quero estar e viver.

Então isso significa que consigo me apresentar perfeitamente em todas as partidas? Não, obviamente não. Eu não sou o competidor adequado, nem mesmo posso dizer que serei um dia, ainda hoje sofro derrotas nesse objetivo também. Sou derrotado em tentar ser um bom derrotado. É como se diz sobre o estoicismo, ninguém “é” estóico, as pessoas apenas tentam ser estóicas. Mas eu amo demais essa minha tentativa de ser um competidor sem neuras. Hoje sou uma pessoa um pouco melhor que ontem, e espero que eu seja hoje pior do que serei amanhã.

Sobre aquele passado, tive uma juventude azeda, um período extremamente narcisista onde eu, por fragilidade interna, precisava acreditar que possuía algum tipo de superioridade aos meus semelhantes, hoje sei que isso sequer existe, mas eu tinha a fraqueza de precisar ser superior. Sinto muito por quem conviveu comigo nessa época, eu não sei se suportaria alguém assim sem dar umas bolachas. Sinto muito por quem vive a miséria de “ser superior”, afastando as pessoas. Como a superioridade plena, de amplo espectro, não existe, a pessoa vivemos apenas uma auto-enganação que escreve linhas imaginárias retas por cima de uma realidade torta a qual não aceitam. Se você acha que está nessa, na minha humilde opinião eu gostaria de te sugerir vir ser um ninguénzão qualquer, que não é porcaria alguma junto comigo!

Eu nunca evoluí tanto, no meu próprio conceito, desde que comecei a fracassar em tudo. E a liberdade, ah a liberdade de só disputar quando eu quero, com quem eu quero, não aceito qualquer competição que outra pessoa, ou mesmo a sociedade, me força a entrar. E as que eu aceito, também estou ali para perder pois faz parte, e a maior parte.

“Ah mas você ainda é bem teimoso”. Sim, concordo, algumas vezes falho em ainda ser teimoso pois nunca parei de errar, acontece que em outras na verdade não é teimosia. Algumas dessas minhas “certezas” de hoje, são fruto de ter cedido muitas vezes, para pessoas diferentes, e de ter assimilado isso a mim. Por ter me deixado receber o que emitiam, sabendo o quão imbecil eu sou, isso me deu acesso a informações de várias fontes. Minhas certezas nem estão gravadas na pedra se reparar direito. Mas pode ser que eu realmente seja chatinho em não aceitar simples convicções que servem como alicerce sólido para outra pessoa. Sou sim chato se essas convicções não vierem com uma bagagem bacana que irá mudar meu mundo e me surpreender novamente. Acho que gente vai ficando chato assim mesmo.

Você não sofre dessas neuroses todas citadas, ou de quase nenhuma? Saiba que te invejo demais, deve ser muito da hora não ter que passar por essa decadência toda! Caso tenha se identificado com algo, qual meu conselho? Aceite a presença daquela companheira, ela vai estar com você quer você aceite ou não, aproveite que ela traz coisa boa se você a aceitar. Um tapa a mais ou a menos não vai te impedir de viver.
Bora dar a cara a tapa?

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